quarta-feira, 24 de abril de 2013

O professor sem teoria para o sexo

 “Só assisto essa aula porque o professor é um gato”, lembrei das palavras de uma colega espevitada que tínhamos na universidade. Vivia solta pelos corredores do campus de letras, “doida pra dar” para os professores.
Rárá.

De que está rindo?

Ah, essa pergunta é do homem do outro lado da linha, que costuma telefonar depois das classes que leciona nas quartas-feiras. É o professor de Teoria Literária. Barthes nunca me excitou tanto. 

Ah, nada, nada... Tô rindo de uma bobagem... — digo concentrada num prazer saboroso. Ele é tímido, penso, me liga e fica sem saber o que dizer.

Quantos anos você tem mesmo, menina?
 
Dezenove respondo mordendo os lábios, o gato em cima de mim, me azunhando. Que tola, como se ele pudesse me ver! A sensualidade numa adolescente é tão espatifada!  

No final da última aula, esperei que todos saíssem da sala e nos deixassem sozinhos. Ousei o passo mais sensual até a mesa, onde o professor, sentado na cadeira, arrumava os papéis, distraído ou fingindo. Queria encostar-me nele, roçar meus seios... 

Inclinei-me em frente a ele, apoiando-me na mesa. Sem mais nem menos entrou uma vontade de espirrar, e quase cuspo seu rosto. 

Tome aqui um lenço. Está tomando remédio pra gripe? — disse ele, distraído.

Sim, me dá um cigarro? — disse e saímos da sala. 

Ai, que ridículo, me arrepio todinha só de me lembrar daquela cena patética. Enrolo o dedo no longo fio do telefone, sentindo sua respiração pesada. Escuto seu silêncio. 
 
O que você está fazendo agora? perguntou-me. 

Você quer saber mesmo? — aprendi a falar como uma gata no cio. 

Olhe, não foi essa uma pergunta erótica; quero saber se está vendo algo interessante na TV, folheando alguma revista...

Sei... estou louca, sinto a dor... Sabe a dor...?!

Adorno, leia Adorno — interrompeu-me da maneira mais estúpida.

Dei um riso, constrangida. 

A-ha! Seu bobo! Professores de teoria não conseguem mesmo ser engraçados, estão contaminados de mistério. Estou sentindo uma dor sufocante, não adianta me tocar, não passa... Posso ir na sua casa?

Rêrêrê, aquela risadinha de homem inteligente e bobo

Desconversou, como imaginava. Quarentão mais frouxo! Eu queria me jogar em cima dele, me livrar daquela dor, ai, ai... Desligou, “tinha que escrever uma matéria” além de professor era jornalista freelance. Afastei o gato de mim, apaguei a luz, tirei a calcinha se ele soubesse que estava só de calcinha o tempo todo... Alisei minha pele, o pelo do gato... E imaginei que os lábios finos do professor eram uma flor de leite, aquela pelezinha do leite, tão pálido ele era; seus lábios sugavam meus seios... depois  me amaciavam a pele com beijos lentos, ah, Barthes, Barthes, o autor está morto, mas não o autor desse crime. A língua dele, flor, pétala aveludada me lambia toda até o dedão do pé. Lambida prazerosa de gato. Ai, que dor, que dor. Ah, como seria o professor naquela hora seria gentil como um pombo branquíssimo a me beliscar a barriga, a carne farta da minha bunda? Sim, cândido, a princípio. Em seguida, reagiria como um bicho. Faminto, comeria minha ostra; depois me colocaria de quatro e me seguraria com força... O professor é brutal...

Peguei o diário. Queria escrever, mas mordi o travesseiro, me apertei inteira. Em vez de sentir alívio, sentia raiva, meu prazer se consumia em poucos minutos. E acabou-se! Respirei como se tivesse sofrido um quase ataque do coração. Peguei um livro de Gide (o professor me orienta a leitura) e li umas páginas, (...“vos odeio!”), ai, essa leitura me deixa brocha e minhas partes aos poucos congelam. Certa vez, uma amiga “experiente” colocou gelo nas partes íntimas para acalmar a falta... 

Ai, ele é tremendo!, gritei me debatendo na cama. Vejo-o de novo em cima de mim. Queria ter uma imaginação muito mais poderosa. “Deus ajude que meu ego e super ego não virem gelatina, senão eu corro o risco de sair por aí igual uma cadela no cio”, lembrei-me de novo da colega saltitante da universidade usava calcinha vermelha e saia transparente, era puro sexo, nascida pro pecado, meu caro Nelson Rodrigues, toda mulher nasceu pra isso mesmo? 

“Querido diário”, quem disse que escrever resolve algum problema?! Será que o professor também imaginava as mesmas coisas? E se eu agora entrasse na sua casa?
 
A cena seria:

Pedro Henrique toma um vinho, folheia um suplemento cultural. Lê sobre uma exposição dos quadros..., no museu... Vanguarda.
Fechei o diário e adormeci. Os dias seguintes é que foram!

Passaram-se três dias, não conseguia me concentrar com nada. Coloquei Dostoiévski e Camus contra a parede: me deixem em paz! Tanta leitura pra nada! Estava cansada do joguinho de um homem maduro, chega, estou abafada! “Não quero saber da semiótica, mas da sua minhoquinha, professor”, dava vontade de dizer isso na cara dele! Ai, eu lá quero saber de linguística, literatura? Estou pegando fogo. 

Tranquei-me no banheiro e fiquei folheando as revistas de mulher pelada do irmão. Quanto peito lindo, pensei, morro de inveja dessas mulheres. Não deixo de me excitar com elas também, todas atrizes de novela, sexo é pura dramaturgia. E sempre será tabu, senão escancara e perde a graça. E mulher que não finge pelo menos certo tipo de pudor não é mulher, “é uma égua mesmo”, como diriam os machos em terras de “coroné”. 

Folheando páginas eróticas, eu. 

Ai, algumas mulheres são tão peludas... Será que homem gosta de um tapetinho...? Se eles imaginassem como depilação acaba com o humor da mulher, depilariam a barba com cera quente. Sei pouco sobre sexo... ah, não, não sou virgem, não... Caso fosse: o professor me colocaria na cama como uma menininha pura e vestida numa camisola branca, meteria a mão por debaixo do fino tecido, eu lhe diria: “stop! só por trás”. 

Ai, Letícia, tenham piedade de toda sujeira que passa pela sua cabeça! Se minha mãe lesse tais pensamentos, derramaria uma lágrima de pudor. Aliás, se alguém lesse esse diário, estaria frita! Ai, ai, olho pro céu, estrelinha, estrelinha, quem não quer comer una lolita enamorada, por Dios!
 
Quando me tornar adulta ainda não sou, psiu! ,  quando me tornar adulta e tiver um marido, vou virar santa, santinha. Tenho tendência ao sexo apático, que é pura imaginação. Quem estiver lendo isso nem pense que sou uma depravada, invento mais que tudo... e não dou pra qualquer um não, tem que ser pra alguém com conteúdo...
Tremendo o conteúdo do professor, o imagino assim: “ó”.

Folheio as páginas onde a atriz da capa mostra seu “talento”. É uma bela atriz, não se pode negar. Sinto algum desejo por mulheres? Não, não, mas me excito com mulheres nuas. Sofro, porém, desejo mais forte com homens femininos. Joguei a revista de novo na gaveta, peguei meu diário. Ao sair do banheiro, o telefone.

Oi, é você?! tentei não denunciar o tesão pavoroso que sinto ao ouvir sua voz.
É ele, o professor. 

Você está ocupada?
 
Ah, se ele soubesse com que tipo de atividade venho me ocupando.

Não, imagina. Posso ir na sua casa?perguntei sem ai, ai, ai. Quando quero algo, não dou voltas. O impulso na juventude é tão singelo, na velhice vira cara de pau. 

O homem emudeceu; fechou os olhos? — sei que ele ri de olhos fechados. Sentia um gracioso espanto, sou eu tão nova e natural?
 
Claro, vem... Anote o endereço: 

Endereço anotado com mãos tamborilantes. Mandei um beijinho, “té já”, o corpo irrigando-se com um líquido quente, atiçando minhas partes. Corri para o quarto, abri o guarda-roupa como se uma fera me possuísse, tirei um punhado de roupas de dentro das gavetas, fiquei nua, me olhei no espelho me comendo, ai, que ca-lor! Coloquei um top, tirei uma blusa, sutiã ou sem sutiã?, meus peitinhos sem vida, sutiã e enchimento, tira e bota, nada prestava! Antes de sair, perfumei a vagina, lábios da vagina perfumados como duas pétalas de rosa, e passei um óleo poderoso no rego da bunda. Esse lugar apertado e quentinho fede muito.
Saí de casa louca pra me livrar da dor. Estou apaixonada por aquele homem. Que ele me livre da dor, a ideia do sexo me violenta, e sangro de um prazer tão natural, é de bicho montado no outro, trepando, no meio da rua; é tão natural que me entregasse a ele, porque eu já o desejava há tanto tempo... 

Querido professor,,,
tento registrar esse exato minuto para não esquecê-lo. sou tão romântica e puta ao mesmo tempo!
Querido professor,
eu já fazia amor com seus gestos: o jeito como passa a mão no cabelo; quando coloca a mão no queixo pensativo e vulnerável diante de mim,
eu sangrava.
agora me livre da dor, pois o sexo é um suculento pedaço de carne a ser devorado, depois acaba, e fica o vazio de querer outro tipo de fome. 

Rasguei o papel, enfiei o diário na bolsa, e saí correndo. Caminhei violenta pela rua em direção ao ponto de ônibus; sem querer pensar em nada sujo, abri um parêntese mentalmente:

(
Meu amor, sou uma romanticazinha, guardo todos os versos que você anota em papel solto, leio todos os livros que você recomenda, são tão! Leio sempre antes da sua aula pra render assunto; me sento na poltrona e leio... no meio da tarde sinto a pressão baixar, o vento entra pela janela, sinto aquele frio impossível em dezembro, imagina! os lábios ficam até ressecados, passo mal de amor e sede, até que acordo pra realidade do seu mundo, as quartas-feiras...
Não tive tempo de fechar o parêntese. Ele abriu a porta do apartamento, um espaço decorado com móveis antigos, objetos de arte, livros e mais livros no chão e nas estantes. Entrei sem o furor que planejara durante o caminho, no fundo sou tímida. Entrei: meus olhos arrastando-se pelo chão até que chegassem ao sofá e passassem a admirar o tapete branco. Só o encarei quando ele levantou meu queixo e beijou-me a testa.

Quer vinho?

Trouxe-me uma taça, sentou-se ao meu lado e deu-me um presente. Rasguei o papel, ansiosa, era um livro. 

Já leu K.?

Não li esse livro. 

Dentro dele, uma dedicatória suave, como se quase não tivesse tocado a ponta da caneta no papel. As mãos suas me tocariam assim, sem deixar marcas: 

À doce Letícia, que tem olhos de amar
Olhos que prometem felicidade... 

Apertei o livro contra meu peito, dei um gole gordo no vinho, queria me embriagar, a dor voltara, eu tinha o professor diante de mim, estava sem palavras, ai de mim, ai do discurso amoroso... A paixão é absoluta; o amor, fragmento. Ah, suspirei, suspirei, emulando um prazer silencioso do ar misturado ao ar. Meu corpo ganhava uma composição diferente, menos sólida, o desejo vaporoso criava gotinhas na pele, estava salivando. 

Amaria cada pelozinho do seu braço — imaginei a voz dele sussurrando no meu ouvido. 

O professor levantou-se de repente, deixando-me perdida no ar. Não me mexi. Fiquei ali sentada, e tensa, segurando a dor entre as pernas. Ele entrou e saiu do quarto. Trouxe  uns livros, “leia”...
Ah, mais leitura, que excitante!, pensei desanimada. Assim passará a dor, literatura cura tudo: dor de cotovelo, desespero e dor na periquita! Estava louco

Ri, acho que ri com olhos estalados. Ele estava nervoso, eu o deixava tenso? Voltou ao quarto, dessa vez trouxe um album com fotos de viagens suas pela Europa. 

Ai, que lindo!exclamei. Paisagem, montanha, neve, monumentos...

Eu não queria ser vulgar, mas fiquei pensando: Onde está o monumento dele? Onde está o Wally, professor

Tomei outra taça de vinho, mas nem bêbada ficava, era um choque permanecer sóbria diante de homem maduro que não sabe o que fazer com uma ninfeta! Terminada a sessão de fotos, ele me puxou pelo braço e sem jeito nos abraçamos. Agora sim, pensei. Ele beijou meu pescoço, “gosto do seu perfume”, disse assim. 

Não uso nada, cheiro a pele murmurei como se enfraquecesse. Sem quase respirar.

Gosto da sua carne então, do que ela exala naturalmente...

Ai, a pontada da dor novamente. A respiração dele colada na minha. Agarrei-o pela cintura. Gosto da sua barba malfeita, pensei, mas não quis dizer, meus pensamentos sempre foram pedras preciosas, nem todo mundo precisa saber o que penso, tampouco o homem precisa saber que o desejo tanto, tanto...

Soltou-me. Estava suando. Gotas de perturbação derretiam-lhe o semblante macio, agora ele me parecia transtornado e um pouco louco. Olhava para um lado e para outro, sem me encarar, inquieto. Um homem em completo desajuste! Meu Deus, onde vim me meter?, pensei ao me dar conta de que já levava uma hora naquela incômoda sala de estar.
Fui até a janela. Acendi um cigarro, como era bom fumar e ser brochante, pensei, pensei, pérolas raras. Soubesse ele quanto tempo gastei imaginando esse dia... ah, que bobo! Abraçou-me por trás. Não me queria perder? Virei-me e o encarei, ele agora fumava comigo. Ficamos olhando o nada, a parede suja em frente, dividindo a fumaça. Como parecia infantil, se não fossem as rugas no rosto lhe tomaria o cigarro da boca, que menininho indefeso! Levou-me em seguida ao quarto. Nessa hora, tive um ataque de esperança, e ele me sentiu vibrar; com um ímpeto feroz, jogou-me na cama, como um trapo. Tirei os cabelos que me cobriam o rosto. Tentei fazer cara de sexo, como assim?, cara de ahn...

Ele me virou de costas, oh, como imaginei? Soltei um riso de um canto a outro da boca, com pescoço esticado, som rouco de riso abafado. Sentou-se em cima de mim, segurou-me o cabelo, como se eu fosse o quê?! Que está fazendo?, perguntei-me um pouco assustada. Ele deslizou as mãos pelas minhas costas, massageando-as. Fiquei mais tensa do que se tivesse visto um fantasma na minha frente. Não mexi um músculo do corpo. Ao contrário do que imaginei, suas mãos eram pesadas ele era um intelectual na rua e um operário na cama. Que pavor! Virei-me, fiquei de frentre pra ele, me imaginei peituda com a atriz da revista. Nada disse, evitei até falar com meus olhos profanos. “Sabe segurar um olhar de desejo?” pensei e lembrei do poeta. Quem não sabe, pois.
O homem não era de saber dessas coisas; levantou-se da cama e voltou à sala. Eu me estiquei e ajeitei a blusa troncha, tinha caído um botão, merda, antes valesse o prejuízo, mas não, pensei. Estava inconsciente e um pouco tonta, aquilo tinha acontecido mesmo? Havia sido abusada ou o sexo com ele fora tão metafísico que transcendi a realidade e agora via duendes mancos na minha frente? Encontrei-o em pé no meio da sala, numa angústia de cachorro que precisa fazer suas necessidades no jardim; vou soltá-lo, ameacei. Não, melhor, me livro disso. 

Tenho que ir, está tarde e... — eu disse, me cortando.

Não, por favor. 

Meus Deus, o professor, o homem, estava ajoelhado diante de mim?
 
Não vá, peço que fique — implorou.

Tenho mãe pra dar satisfação menti, minha mãe não estava nem aí pra nada.

Professor... ai, desculpa, foi o costume. É que na verdade eu não devia ter esquecido que você é meu professor e professores de teoria literária não trep…

Foi o que adoraria ter dito, mas disse apenas “professor”, como se o castigasse, e parei por aí. Você é meu professor, que quer de mim?, pensei olhando pra ele. O que desejei dizer mesmo ficou guardado, até eu bater a porta daquele apartamento, minutos depois: 

“... Fique aí com os personagens desses livros todos que lê! Não lhe serviram pra nada! Agora, se quiser dar uma mesmo, leia aquele escritor... Aquele livro me arrebentou, descobri outros prazeres da literatura”. 

Ai, que estúpida sou, dezenove anos. Meus pensamentos preciosos, lindos, todos guardados numa caixinha. 

Olhei pra ele, pedi que se levantasse. Não merecia saber o que se passava pela minha cabeça, não... 

Dei um tchauzinho e bati a porta. A vizinha do apartamento ao lado, uma senhora com cabelos fofos de algodão, acompanhou-me com um olhar duro até eu entrar no elevador, como se me jogasse na cara: “uma menina nova dessa com um bunda mole daqueles”.
Estava certa. Eu era muita teoria pra qualquer aulinha dele...

Entrei no meu quarto e me joguei na cama com roupa e sapatos. Quantos meses de conversas ao telefone, quantos meses pensando nele, pra quê? Os homens são tão infantis, não existe literatura que salve um homem sem preparo emocional! Rá rá. A coisa me parecia tão simples. Como operar uma máquina. Bastava lubrificar, esquentar e pô-la em ação! Sem teoria!   

Fiquei passando os canais na TV, não era desse jeito que esperava terminar a noite de sábado. Fui até a geladeira, peguei uma cenoura, salpiquei-lhe sal. Enfiei-a na boca, sem morder, chupando o salgado. Depois dei várias mordidas, uma atrás da outra, sentia raiva! Mordia, mordia, o sal entrava na pele ressecada dos meus lábios como um ácido, me queimando. Mordi o último taco com tanto ódio que feri minha boca, e sangrava.

De repente, na boca senti o inesperado sabor do sexo:

de arder,
sem dor.

sábado, 20 de abril de 2013

Londres luxo

Quem será que está ligando a essa hora? Ah, só podia. Dou um longo suspiro: 

— Hello!

— Amiga, bom dia! Acordaê!

— ...

Ana? Oi, cê tá aí?
 
Está me ouvindo? — pergunto-lhe um pouco impaciente. Levanto-me da cama, o edredom sujo cai no carpete empoeirado. Fico de frente para a janela. Lá embaixo, o jardim mal cuidado do vizinho. 

Cara, a noite passada foi um essscândalo... Eu não queria sair de cima, não queria, não queria... Oi? Tem alguém aí?
Hello!! — dou um risinho. A ligação está péssima... Sair de cima de quem? Do Roberto?
— ... não queria, não queria...

Fernanda me conta todos os detalhes da vida íntima deles (todos: a corrente que enganchou no orelha dele quando tentavam uma posição X, as cócegas que ela tem em determinados lugares, etc., blá!). Observo o jardim do vizinho, a grama cheia e sem cortar, o piso de cimento   parece o pátio de uma prisão siberiana.  

Ela não para de falar... 

Oi, tá aí? Então, cara, tava tão bom que... não queria, não queria... 

Enquanto me descreve as cenas, parece tocar-se, repetindo com prazer os movimentos.

Sei, não queria repito com minha voz seca. Ah, que lindo, você consegue atingir o orgasmo dentro?pergunto tentando render assunto.

— Vários. Ué, você não?

Eu? E isso lá existe? 

OMG! 

Ficamos em silêncio. O que ela quis dizer com “oooh” ? 

Como vai a busca de trabalho? pergunta-me só por perguntar. 

Não está me dando nenhum prazer... Fernanda, você está mudando de assunto?

Não, não... Então tu num tem orgasmos, Ana? 

Tomo um gole d´agua. Fernanda pensa que é minha amiga só porque moramos juntas. Se ela soubesse como eu tenho raiva de escutar a voz cínica dela... A Fernanda é uma anta, uma anta! Uma Macabéia moderna do Sudeste.
— Eu sinto uma angústia... — desabafo, os olhos perdidos na grama do jardim.

Sinto um extremo pavor, penso e me calo. Se ela soubesse o pavor que sinto... Não é medo do sexo, é o medo do pensamento corrompido. É não poder falar naquela hora. Uma vez tentei, o João, meu marido, disse “yes, yes”, tapou minha boca, engoli a dor abafada, ele por trás, “yes, yes”. Eu pensava no Dumbo, aquele elefante deprimido, neurótico, que me deixava nostálgica nos Natais. Desde pequena sou nostálgica.

Eu tento me concentrar, sabe, Fê? — digo sem pensar.

Por que fico tão íntima das pessoas quando estou na solidão das cavernas?, pergunto-me. Olho para o céu, escuto a respiração dos pássaros de voo lento, sinto gosto de tronco de árvore amargando a boca, folhas caem no parque, tapam meu sexo...

— Eu penso em várias coisas, Fê — continuo, subitamente íntima dela. — Sonho acordada, o João corre, tapando-se envergonhado, como nos sonhos que ele tem, sonha sempre que está pelado; deve ser medo de se expor, digo com minha interpretação barata, não entendo nada de sonhos, de psicanálise, mas uma amiga aspirante a psicanalista, Ana Flávia, que dava conselhos rápidos e febris, sabia das coisas: “Freud explica, filha”... “é fogo na periquita”... 

Caaara, cê dá tanta volta assim? Tu pensa muito, esse é o teu probrema!

Ai, Fernanda é tão sexual — suspiro. Seu corpo elástico exala aquele cheiro místico de merda e água de colônia de que todo macho gosta. “Você não sabe que a mulher exala esse cheiro?”, perguntou-me certa vez um namoradinho idiota da adolescência. Cheiro? Eu cheirava a perfume francês falsificado. Fernanda tem o cheiro de quem cavalga nua, suas partes devem cheirar a suor de cavalo.

Você não entende, querida respondo depois de uns segundos em silêncio. Acabo de ver um rato no jardim do vizinho. Com toda aquela grama selvagem, só podia!

Cara, é normal pensar numas coisinhas... Mas pensar nessas coisas brochantes que tu pensa, num dá! Olhe, vou dar uma dica: pense num cara musculoso...

Ah, não gosto — interrompo, já sei o que ela vai dizer. Quando vejo um cara muito musculoso, calculo o quanto o cérebro foi esmagado pra dar espaço a tanta massa.

Ah, que preconceito! O Roberto é musculosinho...

Musculosinho... haha, não é pra tanto.

Silêncio. Será que ela se ofendeu? Sim, a Fernanda é superficial demais, com sua bunda dura de fazer inveja.

Olhe, só tem porcaria. Estou me referindo a trabalho... não tem nada que preste digo sem paciência.

Ah, por que tu num tenta trabalhar lá na night comigo? Tem um monte de brasileiro trabalhando, sabia?

Hum, não sei se dou pra isso. Dançar e rir pra turista bêbado...

— Caraca, tu também num dá pá nada, né? Té parece que tá quessa bola toda!

O que você quis dizer com isso?

Nada, nada... mas acho que na situação que tu tá, esse visto de casada que num sai nunca, vai conseguir coisa melhor, cara?

Ok, basta!, termino a conversa. “A gente se fala depois”. Desisto. É muito difícil fazer qualquer criatura entender. Ainda mais se se trata de uma anta de bunda dura como a “Fernanta". A cabeça dela é fraca, tadinha. Eu sou tão malvada. Tenho inveja dela, na verdade. Estou cá com minha ideias, bunda mole e sem trabalho quem está perdendo? “Loser, loser”, gritariam meus amiguinhos da adolescência. Ser loser num outro país é ser duas vezes loser. Espio pela porta, não quero encontrar ninguém. Um dos nossos “companheiros” saiu do quarto, há dias não o via, achei que tivesse visto seu fóssil na cama. Deixa sempre a porta entreaberta... Eu, hein, a do nosso quarto só com cadeado! Somos oito nessa casa, todos brasileiros, não dá pra confiar. Oito... Como alguém pode pensar em sexo? Pergunto sempre ao meu marido. Como alguém pode pensar e fazer alguma coisa nesse colchão sujo, cheio de ácaros? Com tantos ouvidos colados na nossa parede? A Fernanda está certa, é liberal, vai malhar e deixar a bunda dura porque a vida não é mole, não!

A casa agora está vazia. É um milagre. Respiro a solidão deprimente da casa velha se ela fosse minha, dava um bom trato. Adoro casa antiga. Mas ninguém está sozinho numa casa de séculos e bolinhas atrás... Por isso aprendi a respeitar o silêncio dos fantasmas e ratos. Vou na ponta do pé até a cozinha. Faço um chá, comecei a gostar de chá inglês. Acho chique. Tomo chá preto com leite de soja, um luxo que me permito de vez em quando. O leite normal daqui me dá náuseas. Porém é mais barato. O inverno está chegando, escondo-me no roupão encardido. A dona Catarina, brasileira e proprietária deste apartamento, não quer ninguém usando o aquecedor. “Quero mais que morram de frio!”, disse olhando as unhas vermelhas. Outro dia entrou aqui de madrugada pra saber quem era o “filadaputa que tava desrespeitando as ordes dela”. “Quem quiser morar aqui tem que tá de acordo cás ordes minhas”, gritou. A Catarina é um biscoito finíssimo. Usa peruca e maquiagem definitiva no rosto gordo e cheio de marcas de espinha. Deve ter mais de quarenta anos, calculo. Como conseguiu comprar essa casa não se sabe, é um dos mistérios que acontece na vida de imigrantes em Londres. Dizem que é filha de um pai espanhol e uma mãe baiana, vá saber! Sei que continuo no frio. As roupas nunca secam devidamente dentro dessa casa cheia de mofo.

Ah, mas se eu voltar ao Brasil... loser, loser. A Fernanda disse, enquanto fazia minhas unhas, que me acha uma pessoa deprimida. “Tu num devia ter se amarrado” — ela quer dizer casado... “Não devia, não devia”... Tanta bobagem! Não sei por que me liga o tempo todo se moramos no mesmo cafofo! Com toda essa brasileirada em Londres, ainda quer me arrumar trabalho com brasileiro. Estou velha demais pra ficar ralando num outro país. No  way, no way! Loser!, grito, olhando-me no espelho, grudando um L bem grande com os dedos polegar e indicador na testa.

Darling, I want to speak English, penso tomando meu chá. Fernanda só toma chá de boldo quando a dor de barriga ataca — culpa das dietas malucas que faz. Ah, Fernanda... digo-lhe que tem cara de drag, ela acha o máximo. O máximo é ser assim: bonita e... como é a palavra? ah, despojada, sem grilo. Mas só se é despojada quem tem cabelo liso e corpo sarado. E cara de drag, como a Fernanda. As drags são lindas com sua beleza gigantesca. Ela não se encuca. Tem o Roberto, ah, o Roberto ocupa todos seus pensamentos... Ela se preserva, pensa pouco na vida. Vive a conta-gotas. O Roberto tem lá sua graça, é “musculosinho”, moreno, cinco anos mais novo que ela. Quando brigam sempre brigam — pelas coisas corriqueiras da vida de um casal — “quem era aquela piriguete?” —, quando brigam, ela o descreve com as palavras mais profundas: “Sabe qual é o probrema dele, meninas? O probrema é que ele se acha!”. Concordo com as outras meninas que moram aqui, concordo com a indignação delas.

Ok, Ana, concentre-se na busca de trabalho digo a mim mesma. Fernanda está com a bunda, ops, com a vida feita. Que mau humor! Culpa dela, que me liga com intuito de fazer inveja, é assim que consegue chamar minha atenção: contando sua vida íntima, ela que está mais exposta que carne em açougue. Perda de tempo. O quarto dela fica ao lado do meu, ouço tudo. Mas faz questão de me contar... Eu sei de tudo, minha drag. Vocês fazem sexo até dando cambalhota. E os gritos? Qual foi a última vez que eu...?, pergunto-me. OMG. 

Ah, uma vez por mês é luxo, penso. Aliás, desde que moro aqui — há um ano —, minha vida se resume a um glamour digno de revista Caras. Moro numa casa com seis quartos, somos dois casais, não temos sala, usam-na como quarto também. Uma das nossas colegas, a Francy, é prostituta, sai linda e perfumada todas as noites. Tem uma coleção de bolsas Louis Vuitton. A outra, a Madá, é uma senhora de mais de sessenta anos, empregada doméstica, que se casou com o Floriano, coletor de lixo. Casaram-se numa manhã sombria, na cozinha da casa, único espaço onde todos nos reunimos. O Floriano deu até relaxamento nos cabelos para o grande dia. O casamento foi improvisado com alianças de plástico, todos bêbados com vodka barata. O “padre”, um russo ortodoxo, dissimulado e de bigode, que se infiltra por aqui de vez em quando. Jogou vodka nos noivos — que respingou na cabeça de todos — e brindou: “... tho dhe new couble”, trocando as pernas. Brindemos ao mais novo casal!

Meu sonho é ter uma cozinha grande, mas a “nossa” é pequena pra tanta gente. E a despensa está cheia de noddles, feijão enlatado e o pão mais barato do supermercado. Meu rosto vive cheio de espinhas. “Um luxo”, como diria um amigo gay. Luxo mesmo é não ver barata, penso, numa casa dessas, com oito pessoas... Já reparei que o Floriano não toma banho todos os dias, depois me oferece bagos de tangerina que traz da feira, aqui em Brixton. Traz galinha, macaxeira e até banana-da-terra. Argh, aquelas mãos sujas, que arrepio! Ah, baratas detestam o frio, me consolo. É um luxo.

São oito e meia da noite, o marido ainda trabalha, faz hora-extra em alguma obra do metrô, não sei direito, não quero saber direito... Minha família não pode sonhar, digo a todos que o João é technical engineer... Acham lindo quando falo inglês...

Permaneço no meu quarto, deitada no colchão cheio de bichinhos que me mordem durante o sono. Hoje eu só saí do quarto para fazer chá e ir ao banheiro. Tenho medo dos fantasmas dessa casa. Outro dia ouvi a risada de um senhor e uma mulher cantando ópera. Se a Fernanda estiver de folga hoje à noite, com certeza baterá à minha porta. Ou o Roberto — pra informar: “peguei emprestado mais uma latinha de feijão, valeu, bro. Mas não o vejo há dias... Bom, se ela me ligou pra contar de ontem à noite... Por que ainda estou pensando na “Fernanta”?

Um luxo mesmo é ter um laptop para esmiuçar o Facebook e contar a todos como London is amazing, I am having such a great time... Ha-ha, todos believe me! Ah, as redes sociais e suas máscaras... Que desespero! Estudei Arquitetura e Design, minha gente, que faço eu aqui, enrolada nesse roupão desbotado, sem rumo na vida? Casei por amor? Não penso numa resposta, penso na Fernanda que não pensa na vida, malha a bunda! A Francy me contou outro dia, “em segredo, amiga, ok?!”, que “a Fê tem um filho de sete anos no Brasil” e que o Roberto é casado largou a mulher em Ribeirão Preto com a promessa de que voltaria com uma grana.

OH MY GOD.
Não penso...

Assisto ao documentário de Edvard Munch no Youtube. Uma vontade de ver a exposição das obras dele no museu Tate Modern. Mas na “minha situação”, sem dinheiro pra comprar um pacote de bolacha... Ah, seria um verdadeiro luxo! Fernanda me chama de esnobe, às vezes prefiro passar fome e comprar um livro. Devia começar a malhar e pensar menos... Pensar engorda! Adormeço, cansada de mim mesma, da Fernanda, da Francy, da Madá, da Dri, que é super alto-astral, do Floriano sujo...

Na manhã seguinte, encontro Fernanda na cozinha. Está comendo pão e manteiga e se prepara pra “malhar”. Usa um top que levanta os seus peitos de silicone (eles me dizem: “hello!”) e uma malha bem colada nos quadris. Olho-a de cima a baixo... a Fernanda me atrai? Que ideia! Argh, que nojo! Antes que ela puxe conversa, me adianto:

Você já viu O Grito, de Munch?

O grito de quem, garota? Que monkey?

Não se faça de boba respondo com ironia.
Acordei com disposição para rir dessa anta, não tenho nada melhor a fazer mesmo. Lembro da minha amiga de infância que disputava comigo quem lia mais livros. Que engraçado... Tantos livros e agora estou aqui na merda e sem orgasmos! Olho para a “Fernanta”, que não pensa, só come: O grito... 

Nossa, tu ouviu, Aninha?

Todo mundo “ouviu” O Grito de Edvard — capricho no sotaque.

Ela arregala os olhos e mastiga com rapidez. Disse alguma coisa errada? Será que O Grito provoca-lhe um sentimento perturbador? Será? Meu Deus, esse quadro virou pop mesmo! Come com voracidade, respira fundo. Parece um hamster. Como tem cara de drag, minha Fernanda. Se não fosse sua bunda dura..., penso. Ah, sou tão amarga!

Xiii diz ela, tapando a boca com suas unhas grandes e pintadas de dourado. Cara, cala a boca... Seguinte: o Roberto vazou por uns dias... a polícia tá por perto, ele tá boladaço... O grito que cês ouviram... Ah, foi o Eduardo messsmo... o cara é um mooonstro... Seutecontá tu vai ficar de boca aberta... Cara, então todo mundo sabe do Edu?

E dispara a falar, blá...

Eduardo, o que achei que estivesse morto, penso. Agora as coisas fazem sentido, o Eduardo está enfiado no quarto dela há dias... etc. Ela enfia o último pedaço do pão na boca e faz um gesto com suas mãos grandes. 

— Aninha, tu num acredita, o material dele é assim ó: gigante...

Sim, não acredito, estou boquiaberta, penso. O grito não sai de dentro de mim, mas da casa, do quarto sujo, do jardim do vizinho...

Cara, agora que tu já sabe...vô te contar... diz ela, olhando para os lados.
Por que acha que eu preciso saber de tudo? Fecho meus olhos com desgosto.

Eu tô grávida. Mas não sei quem é o pai.

Finjo surpresa. A notícia, porém, não me impressiona nem um pouco. A carne de cavalo que o Floriano compra na feira provoca alguma reação em mim.

Você vai fazer o quê?pergunto-lhe sem interesse.

Ué, vô ter o filho, vô criar o moleque com o Roberto... Ah, é menina, tenho certeza. Tenho até nome pra ela — diz com um sorriso quase sincero.

Explica, em seguida, que um filho talvez mude a situação deles no país.

Não vão poder expulsar a gente agora... Sim, Roberto vai gostar da ideia...

Fala com praticidade, passando a língua pelos dentes, limpando a boca suja... blá blá... Coloco as minhas mãos no rosto, sinto-me um monstro deformado. Estou dentro do grito. Se eu já não dormia com os gritos abafados de sexo, como vou dormir agora com os de um recém-nascido?, pergunto-me. Fernanda se limpa derrubando farelos de pão no carpete nojento. Bebe o suco de caixa e se despede, vai malhar.

Oh how perfect!

Um luxo, essa vida é um luxo, penso, com o olhar fixo no chão. É o que digo a todos meus amigos e familiares que estão no Brasil.

Um luxo. Vivo em Londres, numa casa com seis quartos, cozinha espaçosa, recentemente fui a um casamento, tenho muitos amigos, a casa vive cheia! E o “nosso” futuro bebê se chamará Beatrice.